Esse texto é da minha prima, achei lindo e queria dividir com vocês. Espero que gostem *-*
As paredes amareladas, o cheiro amarelo. Um típico apartamento sujo de hepáticas lembranças. Na comprida janela do 12º andar, o homem observava a movimentada avenida lá embaixo sendo lavada pela chuva. Nélio, chamavam-no, estava na altura de seus trinta arrastados anos. Acompanhava as idas e vindas dos carros com seu olhar âmbar, que sabe-se lá desde quando o adquirira. Talvez fossem aquelas paredes amarelas, amarelando os cheiros, sabores, vistas e texturas do homem na janela.
"Aonde vão com tanta pressa?", pensava consigo, atento ao trânsito. Pressa, aquela palavra que regera a vida de Nélio aos tropeços - e, afinal, é tropeçando que se perde tempo, que se perde o rumo.
Observou o céu acima; cinza, hostil, sufocante, que chorava pesadas gotas de chuva. Então Nélio abriu os braços. Quis voar alto o suficiente até tocar as nuvens. Lá em cima, ele rasgaria a cortina acinzentada para que o sol parasse com aquela brincadeira de mal gosto de se esconder da gente. Contudo, ele não podia voar. Apenas querer o sol não derreteria o escuro que encobria a cidade.
E o silêncio. Um vazio ensurdecedor. "Eu quero vozes", seu silêncio pedia.
Ele precisava de vozes. Um grunhido qualquer, um rasgar de garganta, um sibilar de lábios pacíficos, um mísero murmúrio de boca humana. Entretando, Nélio só ouvia a mudez das paredes amarelas e sussurros inimigos que ele sintetizava dentro da própria mente. Sussurros timbrados que endemoninhavam cada retalho do homem, dizendo-lhe “fracassado”, “rejeitado”, “inútil”, “errôneo”, “irrecorrigível”... “nulo”.
Nélio fora anulado. Anulado do viver, visto que mal vivia, e anulado de si, que se perdeu em algum lugar de um constante mal-viver.
Doze andares abaixo os carros continuavam se estreitando por entre as ruas, apressados, imprecisos, violentos; como as ondas de um mar em fúria. Estar a um passo de mergulho é estar a um passo da morte imediata.
- A um mergulho de distância... – disse ele, a um passo de seu último mergulho.
- Recolhe-te daí, rapaz! Tu tens braços, não asas – disse uma voz rouca às suas costas.
Um velho de aparência saudável estava ali, segurando uma pequena cesta de, ao que aparentava, doces caseiros.
O homem se virou num súbito de susto. Sua perplexidade permitiu apenas que ele resmungasse algo inaudível, algo como meia palavra emendada à metade de outra.
- Perdeste a língua também? Porque o juízo se perdeu há tempos, se bem posso observar.
- Quem é o senhor? Como entrou aqui? O que...
- Menos pressa, meu caro - interrompeu-o o velho. - Sou do 37, aqui ao lado. Não pude deixar de reparar na quietude de teu apartamento hoje. Achei conveniente fazer-te uma visita em nome da boa vizinhança.
- E como diabos entrou aqui? A porta está trancada.
- Eu não disse que não estava.
- Mas... - insistiu o homem na janela, consternado com o velho intruso.
- Aceitas uma trufa? - interrompeu novamente. - Chocolate suíço. Faz bem pra alma.
- Não, obrigado. Agora, se o senhor não se incomoda, eu...
- Na verdade, eu me incomodo - o velho voltou sua atenção à cesta de doces, tranquilamente procurando uma trufa a seu gosto. - Ahá, aqui está a danada! Anda, jovem, pega.
Nélio impacientou-se. Deu as costas à visão da avenida e coçou a nuca fazendo cara de aborrecido.
- Escute, senhor, eu realmente não tenho interesse em comprar doces agora. Já pode ir.
Virou-se novamente para a janela, na esperança de que o tal vendedor de doces não se demorasse a ir embora para importunar outro vizinho.
- Que lástima estes dias de hoje... tão amargos – disse o velho, levemente despreocupado, como se fosse mais um idoso lamentando sobre as frentes frias que traziam muitas chuvas naquela época do ano.
- Não posso deixar de concordar – o outro deu de ombros. – Não me recordo de ter visto o senhor por aqui. É inquilino novo aqui do prédio?
- Não, não... só passo mais tempo lá do que cá. Que tal uma trufa agora, meu jovem?
Nélio desistira de expulsar o estranho de seu apartamento e apenas apanhou o doce na mão sem dizer nada. Era o hábito. Aceitar qualquer coisa sem questionar, sem nem ao menos querer. Aceitar por inércia o que o mundo lhe botava nas mãos e acatar a política do “tanto faz”, porque tanto faz se você não gosta do mecanismo da vida: ela continua funcionando da mesma maneira, você gostando ou não disso.
- Aposto que é tão amarga quanto nossos dias – comentou com o vizinho que lhe dera o doce.
- Amargo és tu com este papo diabético.
Pôs-se novamente a contemplar a vista da janela, anestesiado por amargura. Era tudo tão cinza lá fora. Tudo tão sujo, opaco, feio. Uma ambulância cruzou desesperadamente a avenida, com as estridentes sirenes ligadas que faziam ainda mais feia a cena.
E que desperdício era aquela cidade. As mães de lá já não criavam mais seus filhos para soltá-los no mundo, criavam apenas para protegê-los dele; proteção reclusa dentro dos muros de suas próprias casas, porque lá fora era perigoso demais até para se espiar. Tem criminoso, tem gente de má fé, tem crueldade e bala perdida furando testa de gente inocente.
- Imagina só que coisa louca se a gente pudesse andar na rua sem ter medo – Nélio comentou, como se tivesse deixado um pensamento escapar-lhe acidentalmente pela boca. – Está vendo aquele casal no ponto de ônibus, a moça segurando o bebê no colo? Eles ainda não sabem, mas vão virar reféns de um milhão de medos por causa dessa criança. Dizem que um pequeno como esse daí dá sentido pra vida dos pais. Estranho.
- Por que tu achas estranho, rapaz?
- Bom... supostamente a vida já deveria ter sentido antes de um bebê nascer.
- Supostamente.
- Acho injusto. É muito fácil a vida perder o sentido. Ela é descompassada, a balança sempre pende pro lado ruim, pro lado das perdas, dos erros, dos danos...
- Justamente por isso que é muito mais tentador findar os seus dias.
- Que bom que o senhor compreende isso, só que mesmo assim aqui estamos nós com um papo diabético e uma trufa na minha mão esperando saltar da janela comigo. E não me venha com conversas de suicidas, pouco me importo se eu sou mais um que vai se estatelar no chão por odiar viver, já fique avisado – Nélio disse sem rodeios, desconfiando que viesse alguma espécie de apelo religioso por parte do velho.
- Muito bem, então. Prossiga.
- Já terminei de falar.
- Não me refiro a isto, mente miúda! Eu me refiro à janela. Vai em frente, te jogas duma vez sem cerimônia – então puxou uma cadeira próxima para se sentar. Pousou a cesta de doces no chão, cruzou as pernas e encarou o outro com a mais tranquila das expressões.
- Devo questionar por que cargas d’água o senhor resolveu me incentivar? – arqueou a sobrancelha, visivelmente confuso.
- Não deves. Mas podes. Embora não convenha. Pretendes mesmo virar defunto com o chocolate em mãos?
Nélio resmungou um maldizer qualquer. Que atitude detestável tinha aquele velho.
- Não. Pode ficar com o doce.
- Experimenta. Chocolate suíço. Faz bem...
- ... pra alma. Entendi – emendou Nélio. Provou.
- E então? Tem gosto de quê?
- De... chocolate, oras. – Nélio deu de ombros outra vez.
- Naturalmente. Agora, deixa-me dar um macete a ti: come outro pedaço, devagar e de olhos fechados.
- Por que de olhos fechados?
- Por que abertos?! – o velho rebateu. O mais jovem não insistiu e fechou os olhos para provar outra mordida, movido em maior parte, pelo menos agora, pela curiosidade, e não pela inércia do “tanto faz” de outrora.
Continuava sendo chocolate. Contudo, desta vez, Nélio percebeu que sua textura era incomum; era algo deliciosamente cremoso, porém sem perder sua consistência. O sabor era de tal forma que a língua parecia dançar dentro de sua boca.
- E agora? – perguntou o velho, os seus olhos em expectativa.
- É o melhor chocolate do mundo! – surpreendeu-se o outro, deixando escapar um ligeiro sorriso nas feições amarelas.
- Bom rapaz! O nome disso é degustação. É diferente de simplesmente comer. Com a visão enegrecida, o paladar passa a ser o sentido mais aguçado. Eis o sabor que só pode ser apreciado no escuro!
- Que boa mão têm esses suíços.
- Oh, não. É mão nacional, este daí é um caseiro que imita uma marca suíça. Sabes como andam careiras essas coisas de importados... agora, bom moço, degusta esta avenida abaixo que tu querias te espatifar. Feia, não?
- Muito.
E como era feia. A terra fora, em sua boa parcela, asfixiada pelo cimento que cobria aquelas ruas de uma ponta a outra. O chuvisco insistente não deixava secar o lixo que a chuva forte trouxera de outros becos. Todo muro e parede erguida ali eram assinados por pichadores anarquistas ou vândalos ociosos da região, que rabiscavam seus ilegíveis dizeres como homens das cavernas faziam nos tempos remotos, contanto sobre suas caças. Não raro, era possível ver camadas espessas e cinzas flutuarem acima das cabeças das pessoas que passavam por ali; mas Nélio já não sabia mais se aquilo eram concentrações perigosas de gases poluentes ou se eram artifícios de sua imaginação, que há muito estava habituada a ver tudo tingido a grafite.
- São tantos olhos para pouca cor – disse Nélio, dizendo por dizer.
- E quem disse que eu falei das cores? – retrucou o outro. – Fecha os olhos outra vez.
Nélio obedeceu. Foi apenas quando escureceu a vista que se deu conta que entrava uma brisa reconfortante pela fresta daquela comprida janela. Uma brisa fresca, atípica de ares urbanos. Talvez fosse o grande parque de pinheiros ali perto (o pouco que o cimento não asfixiou), que mais parecia um coador de café: coava o ar residuoso para que chegasse em bom estado à janela de Nélio. Sentiu a brisa trazer um pouco de tranquilidade e um bocado de vida aos pulmões. Lembrou-se de sua infância, uma época sem dissabores. Ele costumava tomar chocolate quente no inverno da serra, quando visitava seus avós. Era o melhor chocolate do mundo...
- Percebe – o velho disse. – como tudo na vida se trata de sabor, e não do que se vê? Veja como tudo é mais saboroso no escuro! Tu não odeias viver, meu caro. Pelo contrário, amas demais a vida. Amas tanto, mas tanto, que sabes quais são os melhores sabores e queres prová-los em tempo integral. Acontece que é difícil degustar vendo toda esta podridão, não é mesmo? Tantos outros amantes da vida se foram, pensando odiar aqui mais que tudo, quando, na verdade, amavam em demasia. Morreram justamente porque viram tudo o que havia de bom e não tinham. Morreram porque viram amor, alegria e paz e não conseguiram ter nada disso para si. Morre-se muito por amor hoje em dia.
O silêncio voltou. Desta vez, porém, ele não pedia vozes. Apenas preencheu um espaço em que não carecia que algo mais fosse dito. Nélio não soube dizer quanto tempo passou na janela, com os olhos fechados, vendo no escuro. Também não soube dizer que rumo tomara o vizinho intruso do 37. Ele simplesmente deixara Nélio para trás, sorrateiramente, sem um singelo “até logo”.
- Dona Iolanda? – Nélio chamou a faxineira do prédio que estava no corredor. Ele estava andando feito barata tonta à procura do vizinho. – O senhor aqui do 37 passou por aqui?
- Do 37? Acho que o senhor se confundiu, seu Nélio. Não mora ninguém no 37.
- Mas viu algum senhor passar por aqui? – ele insistiu. – Com uma cesta de doces? – e foi nesse instante que Nélio notou que Dona Iolanda carregava uma caixa de papelão recheada de pequenos embrulhos coloridos.
- Não vi, não... mas tome aqui, seu Nélio, já que está procurando doces! – ela enfiou a mão na caixa e sorteou um dos embrulhos coloridos. – Uma trufa para o senhor. Mandaram distribuir aqui no prédio. Chocolate suíço, conhece?
- Conheço, sim. Faz bem pra alma.
Jéssica Damas